“A arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual. É o que os Gregos chamaram psicagogia. Só ela possui ao mesmo tempo a validade universal e a plenitude imediata e viva, que são as duas condições mas importantes da ação educativa. Pela união destas duas modalidades de ação espiritual, ela supera ao mesmo tempo a vida real e a reflexão filosófica. A vida possui a plenitude de sentido, mas as suas experiências carecem de valor universal. Sofrem demais a interferência dos sucessos acidentais para que a sua impressão possa alcançar sempre o grau máximo de profundidade. A filosofia e a reflexão atingem a universalidade e penetram na essência das coisas. Mas atuam somente naqueles cujos pensamentos chegam a adquirir a intensidade de uma vivência pessoal. Daqui resulta que a poesia tem vantagem sobre qualquer ensino intelectual e verdade racional, assim como sobre as meras experiências acidentais da vida do indivíduo. É mais filosófica que a vida real (se nos é lícito ampliar o sentido de uma conhecida frase de Aristóteles), mas é, ao mesmo tempo, pela concentração de sua realidade espiritual, mais vital que o conhecimento filosófico.”
Esse belo fragmento da Paidéia, de Werner Jaeger, realça não apenas a importância dos filmes contidos neste módulo, mas serve como justificativa para o projeto A história da filosofia em mais 40 filmes como um todo. A opção por aproximar filosofia e cinema nasceu sem dúvida da percepção de que o cinema empresta uma vida ao conhecimento filosófico que ele não teria enquanto permanecesse na torre de marfim de suas abstrações conceituais. Os quatro filmes deste módulo, entretanto, têm uma característica que os distingue: todos radicalizam a auto-reflexividade característica da filosofia e das grandes obras de arte. A estrada, Bodas de sangue, O homem das novidades e Cega obsessão são obras de arte que, calcadas em uma reflexão sobre o teatro/circo, a dança, o próprio cinema e as artes plásticas, respectivamente, abordam explicitamente o problema da definição e da função das artes num mundo dominado pela indústria cultural e por todas as múltiplas manifestações do mais crasso materialismo.
Esse belo fragmento da Paidéia, de Werner Jaeger, realça não apenas a importância dos filmes contidos neste módulo, mas serve como justificativa para o projeto A história da filosofia em mais 40 filmes como um todo. A opção por aproximar filosofia e cinema nasceu sem dúvida da percepção de que o cinema empresta uma vida ao conhecimento filosófico que ele não teria enquanto permanecesse na torre de marfim de suas abstrações conceituais. Os quatro filmes deste módulo, entretanto, têm uma característica que os distingue: todos radicalizam a auto-reflexividade característica da filosofia e das grandes obras de arte. A estrada, Bodas de sangue, O homem das novidades e Cega obsessão são obras de arte que, calcadas em uma reflexão sobre o teatro/circo, a dança, o próprio cinema e as artes plásticas, respectivamente, abordam explicitamente o problema da definição e da função das artes num mundo dominado pela indústria cultural e por todas as múltiplas manifestações do mais crasso materialismo.
Aula -21
A estrada da vida - Federico Fellini | Itália, 1954
Direção: Federico Fellini
Elenco: Anthony Quinn, Giulietta Masina, Richard Basehart
Zampanò é um homem rude que ganha a vida como artista mambembe. Seu único talento é romper correntes utilizando apenas a força dos músculos peitorais. Para realizar seus números nas praças de inúmeras cidades do interior da Itália, ele precisa de uma assistente capaz de tocar tambor e salpicar de suspense e humor as suas performances. De uma família miserável da qual já comprara a irmã mais velha, que morre em circunstâncias não esclarecidas, Zampanò compra Gelsomina. Ingênua e tocante como o Carlitos de Charles Chaplin, ela é forçada a compartilhar do leito de Zampanò, que a trata com a grosseria que lhe é peculiar. Apesar de tudo, unidos pela arte, os dois se amam e percorrem juntos a estrada da vida, até que a morte os separa. Neste verdadeiro road movie, cada encontro do casal ao longo de seu caminho precisa ser interpretado como um questionamento do lugar da arte (e do amor) em meio a um mundo dominado pelas formas mais crassas de materialismo.
Palestra:
Aula -22
Bodas de sangue - Carlos Saura | Espanha, 1981
Direção: Carlos Saura
Elenco: Antonio Gades, Cristina Hoyos, Juan Antonio Jiménez, Pilar Cárdenas, Carmen Villena
Em Bodas de Sangue, peça de García Lorca, a trama tem como cenários a choupana da noiva, que vive isolada com seu pai, e o casebre vizinho, onde vive o noivo e sua desolada mãe, que perdera filhos e marido em lutas por terra. No dia das bodas, a vinda de Leonardo, com quem a noiva havia tido um romance, reacende um passado afetivo ainda vivo. Em meio à cerimônia de casamento, Leonardo e a noiva fogem, dando motivo à perseguição de ambos por parte do noivo abandonado, tendo o deserto andaluz como paisagem. Todos esses elementos cênicos são deixados de lado por Saura, radicalizando uma sua decisão estética por si mesma já bastante arrojada: lançar mão, além da câmera, tão-somente da dança flamenca como único meio de expressão artística para a sua versão desta obra de Lorca, apostando no poder de expressividade da dança como elemento suficiente para “contar” e tornar legível todo o enredo da peça. Resulta daí um filme que, descontados os relatos e considerações dos bailarinos, representa a peça exclusivamente traduzida na coreografia concebida por Gades, realçando a autonomia e a força de expressão de corpos que dançam, exibindo não mais – porque “mais” seria desnecessário – que um ensaio filmado à luz do dia dentro de um estúdio livre de cenário e apenas com um nínimo de adereço.
Direção: Carlos Saura
Elenco: Antonio Gades, Cristina Hoyos, Juan Antonio Jiménez, Pilar Cárdenas, Carmen Villena
Em Bodas de Sangue, peça de García Lorca, a trama tem como cenários a choupana da noiva, que vive isolada com seu pai, e o casebre vizinho, onde vive o noivo e sua desolada mãe, que perdera filhos e marido em lutas por terra. No dia das bodas, a vinda de Leonardo, com quem a noiva havia tido um romance, reacende um passado afetivo ainda vivo. Em meio à cerimônia de casamento, Leonardo e a noiva fogem, dando motivo à perseguição de ambos por parte do noivo abandonado, tendo o deserto andaluz como paisagem. Todos esses elementos cênicos são deixados de lado por Saura, radicalizando uma sua decisão estética por si mesma já bastante arrojada: lançar mão, além da câmera, tão-somente da dança flamenca como único meio de expressão artística para a sua versão desta obra de Lorca, apostando no poder de expressividade da dança como elemento suficiente para “contar” e tornar legível todo o enredo da peça. Resulta daí um filme que, descontados os relatos e considerações dos bailarinos, representa a peça exclusivamente traduzida na coreografia concebida por Gades, realçando a autonomia e a força de expressão de corpos que dançam, exibindo não mais – porque “mais” seria desnecessário – que um ensaio filmado à luz do dia dentro de um estúdio livre de cenário e apenas com um nínimo de adereço.
Palestra:
Aula -23
O homem das novidades - Buster Keaton | Eua, 1928
Direção: Buster Keaton
Elenco: Buster Keaton, Marceline Day, Harry Gribbon, Harold Goodwin
Vivido pelo próprio Keaton, Luke Shannon é um humilde e desastrado fotógrafo de rua, já muito antiquado diante das inovadoras e avançadas câmeras que habitam a imprensa e os estúdios cinematográficos. Ironicamente, ele apaixona-se por Sally, uma bela moça que trabalha como secretária na Metro Goldwyn Mayer (MGM). Com o objetivo de conquistá-la, Shannon resolve procurar um emprego na companhia – em que o próprio Keaton havia recentemente entrado – e acaba por encontrar num outro câmera o seu maior rival, seja na luta pelo amor de Sally, seja na disputa pela excelência do manuseio da máquina. Parcialmente autobiográfica e absolutamente metalínguistica, esta deliciosa obra-prima do diretor é cinema sobre o cinema, desfilando o paradigma estético que Keaton defendia para a arte cinematográfica: crítico de seus excessos e da sua instrumentalização, mas convicto do seu valor, o autor apresenta-nos à idéia de que a arte é o meio que encontra fim em si mesmo e cuja finalidade não deve ultrapassar o seu próprio fazer. Tudo isso encarnado num personagem, um homem, que se confunde com o seu próprio ofício, retirando de nosso distraído esquecimento a carga presente na palavra que o define: the cameraman. Um filme do “homem-câmera”, uma ode de amor à fotografia e à fotografia em movimento – o cinema.
Direção: Buster Keaton
Elenco: Buster Keaton, Marceline Day, Harry Gribbon, Harold Goodwin
Vivido pelo próprio Keaton, Luke Shannon é um humilde e desastrado fotógrafo de rua, já muito antiquado diante das inovadoras e avançadas câmeras que habitam a imprensa e os estúdios cinematográficos. Ironicamente, ele apaixona-se por Sally, uma bela moça que trabalha como secretária na Metro Goldwyn Mayer (MGM). Com o objetivo de conquistá-la, Shannon resolve procurar um emprego na companhia – em que o próprio Keaton havia recentemente entrado – e acaba por encontrar num outro câmera o seu maior rival, seja na luta pelo amor de Sally, seja na disputa pela excelência do manuseio da máquina. Parcialmente autobiográfica e absolutamente metalínguistica, esta deliciosa obra-prima do diretor é cinema sobre o cinema, desfilando o paradigma estético que Keaton defendia para a arte cinematográfica: crítico de seus excessos e da sua instrumentalização, mas convicto do seu valor, o autor apresenta-nos à idéia de que a arte é o meio que encontra fim em si mesmo e cuja finalidade não deve ultrapassar o seu próprio fazer. Tudo isso encarnado num personagem, um homem, que se confunde com o seu próprio ofício, retirando de nosso distraído esquecimento a carga presente na palavra que o define: the cameraman. Um filme do “homem-câmera”, uma ode de amor à fotografia e à fotografia em movimento – o cinema.
Palestra:
Aula -24
Cega obsessão - Yasuzo Masumura | Japão, 1969
Direção: Yasuzo Masumura
Elenco: Eiji Funakoshi, Mako Midori, Noriko Sengoku
Um escultor cego está em busca de uma nova forma de arte, eminentemente tátil, uma arte que possa realmente nos tocar mesmo em meio a um mundo saturado de estímulos que tendem a embotar a sensibilidade humana. A paixão do escultor cego por uma modelo, que brota quando ele percorre com os dedos a escultura de seu corpo feita por outro artista, leva-o a raptá-la e a aprisioná-la em seu ateliê. A busca pela nova forma de arte, que ambos passam a compartilhar depois que a modelo leva o escultor a matar a própria mãe, logo se confunde com uma busca por sensações cada vez mais intensas, como as que são vividas apenas no auge do amor e da dor. O problema é que, como ambos logo aprenderão, a vida mais intensa se aproxima da morte. Cega obsessão é uma fina reflexão sobre a arte contemporânea e as origens do atual primado do corpo sem órgãos sobre qualquer sentido apreensível conceitualmente.
Direção: Yasuzo Masumura
Elenco: Eiji Funakoshi, Mako Midori, Noriko Sengoku
Um escultor cego está em busca de uma nova forma de arte, eminentemente tátil, uma arte que possa realmente nos tocar mesmo em meio a um mundo saturado de estímulos que tendem a embotar a sensibilidade humana. A paixão do escultor cego por uma modelo, que brota quando ele percorre com os dedos a escultura de seu corpo feita por outro artista, leva-o a raptá-la e a aprisioná-la em seu ateliê. A busca pela nova forma de arte, que ambos passam a compartilhar depois que a modelo leva o escultor a matar a própria mãe, logo se confunde com uma busca por sensações cada vez mais intensas, como as que são vividas apenas no auge do amor e da dor. O problema é que, como ambos logo aprenderão, a vida mais intensa se aproxima da morte. Cega obsessão é uma fina reflexão sobre a arte contemporânea e as origens do atual primado do corpo sem órgãos sobre qualquer sentido apreensível conceitualmente.
Palestra: