19 abril 2016

Módulo 3: O Estrangeiro

Em sua célebre análise de O homem de areia, conto fantástico de Hoffmann, Freud mobiliza um conceito fundamental para pensarmos a dialética entre civilização e barbárie, normal e patológico, eu e outro, o local e o estrangeiro: “da idéia de ‘familiar’, ‘pertencente à casa’ (heimlich), desenvolve-se a idéia de algo afastado dos olhos de estranhos, algo escondido, secreto. (...) heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. O estranho (unheimlich) é, de um modo ou de outro, uma subespécie do familiar (heimlich).”


Se o processo de formação (Bildung) como problematizado pelos filmes do módulo anterior implica sempre o confronto entre a liberdade individual e as demandas da socialização, os filmes deste módulo investigam a raiz mesma desse confronto, aquele momento em que, no mais familiar (heimlich), descobre-se um elemento estranho (unheimlich) que incita a um combate contra a ordem estabelecida. Essa descoberta pode brotar do choque entre culturas distintas, no âmbito do qual o olhar do estrangeiro desnaturaliza os códigos sociais locais (em O medo devora a alma, Ali, é um árabe na Alemanha; em O inquilino, Trelkovsky é um polonês na França); da experiência da loucura, que não raro denuncia com implacável lucidez a insanidade característica de comportamentos ditos normais (como em Shock corridor); e mesmo da melancolia, que, ao privar um homem (Alain Leroy, de Trinta anos esta noite) da crença no sentido da vida, coloca na berlinda o cardápio de sentidos disponível em uma dada sociedade.

 Aula - 9

O medo devora a alma - Rainer Werner Fassbinder | Alemanha, 1974.
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Elenco: El Hedi ben Salem, Brigitte Mira, Barbara Valentin, Karl Scheydt

Para escapar da chuva, Emmi, viúva, faxineira, 60 anos, entra em um bar de Munique que serve de ponto de encontro aos imigrantes locais. A princípio, sente-se como uma estranha no ninho, mas logo Ali a convida para dançar. Ali é negro, muçulmano, trabalha como mecânico e é vinte anos mais jovem do que Emmi. Para retribuir a gentileza, ela lhe oferece um café em sua casa. Ali perde o último metrô. Ambos passam a noite juntos e se apaixonam. Do namoro ao casamento, é um passo apenas. Uma vez casados, no entanto, eles logo começam a enfrentar a resistência da sociedade: os vizinhos, as colegas de trabalho e os filhos de Emmi tratam-na com escárnio, assim como os amigos de Ali. Mas essa é a parte fácil. Quando todos assimilam o casamento, começam a surgir os problemas internos ao próprio casal. Ali e Emmi precisam aprender a contornar a resistência ao estrangeiro que pulsa em cada um de nós. Neste filme, Fassbinder propõe uma releitura subversiva de Tudo o que o céu permite, clássico melodrama hollywoodiano dirigido por Douglas Sirk.





Palestra:




 Aula - 10

 O inquilino - Roman Polanski | França, 1976.
Direção: Roman Polanski
Elenco: Roman Polanski, Isabelle Adjani, Melvyn Douglas, Jo van Vleet

Trelkovsky, um polonês que vive na França e se sente continuamente oprimido, aluga um apartamento em um antigo edifício residencial que só piora a sua sensação de não pertencimento àquele país. Seus vizinhos, em sua maioria velhos e reclusos, observam-no com um misto de desprezo e suspeita. Ao descobrir que a última inquilina do apartamento que alugara, uma mulher jovem e bela, cometera suicídio ao pular de sua janela, Trelkovsky fica obcecado por ela. O que, no final das contas, leva alguém ao suicídio? E à loucura? O inquilino, filme no qual já não é possível discernir realidade psíquica e mundo objetivo, pode ser lido como uma crítica mordaz do célebre Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock. No filme de Polanski, assim como no romance de Roland Topor no qual o cineasta se baseou, o protagonista não é mais o americano que olha, mas o estrangeiro que é continuamente devassado pelo olhar indiscreto do outro.







Palestra:




 Aula - 11

Paixões que alucinam - Samuel Fuller | Eua, 1963.
Direção: Samuel Fuller
Elenco: Peter Breck, Constance Towers, Gene Evans, James Best

Johnny Barrett é um repórter obcecado pela idéia de ganhar o Prêmio Pulitzer. Quando um louco é assassinado dentro de um hospital psiquiátrico e a polícia não consegue encontrar o assassino, Johnny crê que, solucionando o caso, realizará a sua ambição. Depois de incorporar o papel de pervertido sexual tarado pela própria irmã, ele consegue ser internado no manicômio onde o crime ocorrera e logo entra em contato com as três únicas testemunhas do crime: um branco que pensa ser um dos mais importantes generais do exército sulista na Guerra Civil norte-americana; um negro que pensa ser membro da Ku Klux Klan; e um cientista de ascendência européia que, depois de ajudar a construir a bomba atômica, regrediu à idade mental de uma criança de 6 anos. Arroubos de sanidade das três testemunhas permitem que Johnny solucione o caso, mas o caminho pelo qual ele enveredou não tem volta. Shock corridor é uma crítica cáustica ao caráter insano da ideologia dos norte-americanos “normais”.






Palestra:





 Aula - 12


Trinta anos esta noite - Louis Malle | França, 1963.
Direção: Louis Malle
Elenco: Maurice Ronet, Léna Skerla, Yvonne Clech, Hubert Deschamps, Jeanne Moreau

O filme de Malle apresenta as últimas 48 horas de Alain Leroy, um homem decidido a não mais viver após sair do hospital em que se internara a fim de tratar o seu problema com o alcoolismo. Um último sopro de esperança manifesta-se no desejo de rever alguns amigos e encontrar neles um motivo ou um sentido qualquer que afete aquela decisão. A suspensão do seu projeto não dura mais que dois dias, tempo suficiente para que Alain reafirme a falta de sentido que reconhece na existência. Seja a condição de alcoólatra, seja a de potencial suicida, ambas apontam para um mesmo fundo e fracasso: a sua inaptidão e indisposição para com um modo de vida que nele é causa de lassidão e melancolia, reconhecível seja na forjada alegria e contentamento de alguns amigos, seja no escape de outros. Através deste seu personagem, estranho a todos esses possíveis sentidos, Malle oferece-nos uma figura tão alheia à existência que já não lhe reconhece valor. Tal como Roquentin, personagem de Sartre que sente náusea nas mãos, Leroy tem no simbolismo de mãos inábeis – seja para as carícias amorosas, seja para lidar com a vida – a indicação do quanto ele e a existência, mutuamente alheios, correm por paralelas que jamais se cruzam.





Palestra: